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O QUE É TERRIR

 



'Terrir’ só é bom quando feito a sério


O cinema sempre encontrou formas de provocar emoções extremas no público. Do susto ao riso, da lágrima ao desconforto, a experiência de assistir a um filme é quase sempre uma viagem às nossas próprias sensações. Dentro desse vasto universo, existe um subgênero peculiar e, de certo modo, tipicamente brasileiro: o terrir. Mistura de terror com humor, o terrir nasceu da ideia de que o grotesco e o absurdo, quando levados ao limite, em vez de assustar, podem fazer rir.

O termo é uma invenção nacional, cunhada pelo cineasta Ivan Cardoso, que na década de 1980 dirigiu filmes como As Sete Vampiras (1986) e O Segredo da Múmia (1982). Essas obras ajudaram a consolidar um estilo que não se levava a sério e que, justamente por isso, conquistava o público. O exagero, os clichês, os diálogos caricatos e os efeitos especiais precários se transformavam em trunfos criativos.


Mas o que faz o terrir ser, de fato, interessante? E por que ele ainda é lembrado com tanto carinho por fãs de cinema fantástico?

O nascimento do terrir

A história do cinema brasileiro é marcada por movimentos que, muitas vezes, nasceram da necessidade. A falta de grandes orçamentos levou muitos realizadores a buscar alternativas criativas, transformando limitações em estilo. Foi nesse cenário que Ivan Cardoso surgiu com a proposta do terrir: filmes que misturavam elementos de horror clássico, vampiros, múmias, monstros, a situações cômicas, diálogos absurdos e atuações escrachadas.


Em As Sete Vampiras, por exemplo, a história mistura uma trama policial, vampiras sensuais e um detetive atrapalhado, resultando em um filme que jamais conseguiria assustar, mas que arranca boas gargalhadas. Em O Segredo da Múmia, Cardoso coloca uma criatura clássica do terror em situações ridículas, transformando o que deveria ser assustador em um espetáculo de humor involuntário.

Cardoso não estava sozinho nesse terreno. O Brasil, nos anos 1970 e 1980, vivia um momento peculiar: de um lado, a explosão da pornochanchada, com comédias eróticas de baixo orçamento; de outro, a tentativa de emplacar gêneros como ação e terror, mesmo sem condições de competir com Hollywood. O terrir nasceu exatamente no cruzamento desses caminhos: erótico, engraçado, grotesco e, ao mesmo tempo, inspirado em monstros universais.


O humor involuntário do trash

Apesar de o termo terrir ser brasileiro, a mistura de terror e humor não é exclusividade nossa. No exterior, muitos filmes ficaram famosos justamente por serem ruins demais — e, por isso, divertidos. É o caso de Plano 9 do Espaço Sideral (1956), de Ed Wood, frequentemente chamado de “o pior filme de todos os tempos”. A ideia era criar um épico de ficção científica e horror, mas o resultado foi tão desajeitado que acabou se tornando cult.

Esse tipo de produção, nos Estados Unidos, ganhou o nome de trash movies: filmes de baixo orçamento, cheios de erros técnicos, roteiros furados e atuações sofríveis. O público, em vez de rejeitar completamente, abraçou essas obras como “prazeres culpados”. A diferença é que, enquanto o trash muitas vezes surgia do fracasso involuntário, o terrir brasileiro se assumia como paródia. Ivan Cardoso nunca quis competir com os mestres do horror. Pelo contrário: seu objetivo era rir junto ao público, transformando o cinema de monstros em sátira.


O riso como reação ao grotesco

Mas por que rimos de algo que deveria nos causar medo? A resposta pode estar na forma como o ser humano reage ao grotesco. Como já observava o filósofo Henri Bergson em seu ensaio O Riso (1900), o humor nasce do desvio, do inesperado, daquilo que foge à norma. Quando um vampiro aparece em cena de maneira atrapalhada, ou quando um zumbi cai sobre sua própria maquiagem malfeita, o público percebe a quebra da lógica e ri.

Esse riso, no entanto, não é apenas entretenimento. Ele também pode ser entendido como uma forma de crítica. Ao rir de um monstro malfeito, o espectador, de forma inconsciente, está rindo de convenções sociais, de padrões de perfeição, de nossas próprias fragilidades. O terrir, nesse sentido, vai além da piada fácil. Ele expõe medos profundos, a morte, a violência, o desconhecido, mas os transforma em algo digerível, em uma comédia que permite enfrentar o terror de forma mais leve.


O terrir pelo mundo

Apesar de ter um nome tipicamente brasileiro, o terrir encontra parentes próximos em outras cinematografias. Em 1974, Mel Brooks lançou O Jovem Frankenstein, que se tornou um clássico ao parodiar os filmes da Universal dos anos 1930. No lugar do medo, a obra aposta em gags visuais, diálogos espirituosos e um profundo conhecimento do material original.

Na Nova Zelândia, Peter Jackson, antes de se tornar o aclamado diretor da trilogia O Senhor dos Anéis, também explorou o gênero. Em Trash (1987) e Fome Animal (1992), Jackson levou o gore ao limite, criando cenas de violência tão exageradas que o público não conseguia reagir com medo, mas sim com gargalhadas nervosas. Esses filmes, hoje cultuados, mostram como o riso e o horror podem andar juntos de forma consciente e criativa.


No entanto, também há exemplos de produções que acabaram entrando no território do terrir contra a vontade de seus criadores. Filmes como Heavy Metal do Horror (1986), que tentavam ser sérios, acabaram soando involuntariamente cômicos devido a seus excessos e limitações.

O Brasil dos anos 1980 e a função social do riso

O contexto brasileiro em que o terrir surgiu não pode ser ignorado. A década de 1980 foi marcada pela redemocratização após a ditadura militar, pela hiperinflação e por crises políticas e econômicas constantes. Em meio a tanta instabilidade, o humor funcionava como uma válvula de escape.

As Sete Vampiras, lançado em 1986, pode ser visto sob essa ótica. Ao misturar vampiras sensuais, policiais atrapalhados e monstros caricatos, o filme dialogava com uma sociedade que precisava rir de seus próprios problemas. O grotesco, nesse caso, não era apenas estético, mas também político: uma forma de comentar, ainda que indiretamente, os absurdos de um país em transição.


O desafio do tom

O grande desafio do terrir e de qualquer tentativa de misturar humor e horror é acertar o tom. Se a balança pende demais para a comédia, perde-se a tensão que caracteriza o terror. Se o foco é apenas no horror, a piada soa deslocada. Encontrar o equilíbrio entre susto e gargalhada é tarefa para poucos.

Não à toa, muitas produções contemporâneas que tentam aplicar esse método em séries ou filmes acabam tropeçando. Seja ao tratar de temas sérios demais com leveza (como doenças graves ou distúrbios psicológicos), seja ao inserir humor em histórias sobrenaturais, o risco é sempre cair em um limbo em que o público não sabe se deve rir ou sentir medo.


O legado do terrir

Apesar de nunca ter sido um gênero de massas no Brasil, o terrir deixou um legado importante. Ivan Cardoso segue cultuado como um dos nomes mais criativos do cinema nacional, e suas obras são lembradas em festivais e mostras dedicadas ao terror. Além disso, o termo se popularizou e hoje é usado para se referir a qualquer filme que mistura, de forma consciente ou não, o grotesco do horror com a leveza do humor.

O ressurgimento do interesse por cinema fantástico, impulsionado por plataformas de streaming e canais especializados, também ajudou a renovar o público. Filmes de terror dos anos 1980 e 1990 voltaram a ser vistos por novas gerações, que encontram muitas vezes graça onde antes se buscava medo.


Conclusão

O terrir é, em essência, a prova de que o cinema não precisa se levar tão a sério para ser marcante. Quando bem feito, ele transforma monstros em piadas, sustos em gargalhadas e limitações técnicas em estilo. Quando mal executado, pode se tornar involuntariamente engraçado e, ainda assim, sobreviver como cult.

Em um mundo em que o cinema busca constantemente provocar novas emoções, rir do medo continua sendo uma das experiências mais humanas. Talvez porque, no fundo, o riso seja nossa melhor arma contra o terror, seja ele sobrenatural ou cotidiano.
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