O QUE É O CINEMA MARGINAL
CINEMA MARGINAL: HISTÓRIA, ESTÉTICA E LEGADO
Contexto Histórico
O Brasil vivia um dos períodos mais turbulentos de sua história recente. O regime militar instaurado em 1964 consolidava um fechamento político cada vez mais rígido, marcado pela censura, repressão e perseguição aos opositores. O sonho libertário cultivado nos anos 1960 esbarrava na realidade de uma ditadura que sufocava movimentos sociais e culturais.
Apesar disso, a efervescência cultural não deixou de florescer. O Tropicalismo, o Teatro Oficina, a música de Caetano Veloso e Gilberto Gil, a poesia de Torquato Neto e as artes plásticas de Hélio Oiticica e Lygia Clark criaram um ambiente de experimentação e resistência. Foi nesse terreno fértil que emergiu o Cinema Marginal, uma vertente cinematográfica que desafiava tanto os modelos clássicos de narrativa quanto os parâmetros estéticos e ideológicos do Cinema Novo.
Origens e Primeiros Passos
A obra precursora geralmente apontada como marco do Cinema Marginal é “A Margem” (1967), de Ozualdo Candeias. Cineasta paulista vindo de origem popular – caminhoneiro antes de se aventurar nas câmeras –, Candeias construiu um filme grotesco e irônico, que rompia com os padrões narrativos convencionais.
Candeias havia trabalhado anteriormente como assistente de José Mojica Marins (Zé do Caixão), outro ícone fundamental do cinema popular brasileiro, conhecido por sua estética única que combinava horror, crítica social e invenção visual. Essa relação evidencia o elo entre o cinema marginal e a tradição de gêneros populares, como as chanchadas e o horror.
Cinema Novo vs Cinema Marginal
O Cinema Novo, liderado por Glauber Rocha, Nelson Pereira dos Santos e outros, foi um movimento coeso com forte engajamento político, que buscava um “cinema de autor” em diálogo com a tradição europeia (particularmente a nouvelle vague). Seu lema “uma câmera na mão e uma ideia na cabeça” sintetizava a busca por um cinema nacional, comprometido com as contradições do Brasil.
Já o Cinema Marginal se caracterizava pela fragmentação: não era um movimento organizado, mas um conjunto de experiências. Como observa Jean-Claude Bernardet, tratava-se de uma “anomalia prática”: cineastas de diferentes origens sociais e estéticas uniram-se por um espírito de ruptura e marginalidade em relação ao mercado e ao Estado.
Enquanto o Cinema Novo buscava falar “para o povo”, os marginais confrontavam diretamente o público, explorando o grotesco, o erótico, a violência e o deboche como estratégias críticas. Para Sganzerla, o Cinema Novo havia se transformado em um cinema “estrangeiro, europeu”, distante da realidade brasileira.
Características Estéticas
Entre os traços recorrentes do Cinema Marginal, destacam-se:
- A estética do lixo, conceito trabalhado por Ivana Bentes, que via no reaproveitamento de sobras e resíduos uma forma de resistência criativa diante das limitações econômicas.
- Uso de câmera na mão, montagem fragmentada e narrativas não lineares.
- Referências à cultura de massa: histórias em quadrinhos, rádio, TV, publicidade e jornalismo sensacionalista.
- Presença de elementos grotescos e abjetos, erotismo e violência como linguagem de choque.
- Diálogo com a contracultura internacional e a pop art, mas sem abandonar referências nacionais como as chanchadas.
Como escreve Fernão Ramos, tratava-se de um cinema que rejeitava a ideia de “filme bem feito” em favor da invenção, da precariedade e da rebeldia.
Principais cineastas e obras.
O marco inicial de maior impacto foi “O Bandido da Luz Vermelha” (1968), de Rogério Sganzerla, que obteve êxito de público e crítica, ganhando prêmios em festivais e tornando-se um divisor de águas. Misturando narrativa policial, deboche político e referências à mídia sensacionalista, o filme cristalizou a estética marginal.
Outras obras fundamentais do período incluem:
- “O Anjo Nasceu” (1969), de Júlio Bressane – violento, poético e radical em sua forma.
- “Hitler no III Mundo” (1968), de José Agrippino de Paula – experimental e político.
- “Bang Bang” (1971), de Andrea Tonacci – considerado um dos pontos altos da radicalidade formal.
- “Jardim de Guerra” (1968), de Neville d’Almeida – sátira da sociedade de consumo.
Os principais polos de produção foram a Boca do Lixo em São Paulo, a chamada Boca da Fome no Rio de Janeiro e, em menor escala, experiências em Salvador e Belo Horizonte.
Belair e Radicalização.
Em 1970, Rogério Sganzerla e Júlio Bressane criaram a produtora Belair, que realizou, em menos de um ano, uma série de filmes radicais e independentes, como Cuidado, Madame e A Família do Barulho. A experiência sintetizou o espírito de invenção coletiva e produção veloz do Cinema Marginal, mas foi interrompida pela censura e pela repressão política.
A perseguição militar levou diretores como Sganzerla, Bressane e Neville ao exílio, marcando o início do declínio do movimento.
O segmento “Marginal Cafajeste”
Um subgrupo mais voltado ao erotismo e ao apelo popular foi o chamado “Cinema Marginal Cafajeste”, com nomes como Carlos Reichenbach, Antônio Lima, João Callegaro e Jairo Ferreira. Filmes como As Libertinas (1969) e O Pornógrafo (1970) combinavam baixíssimo orçamento, erotismo e irreverência, alcançando alguma circulação comercial.
Crise, Declínio e Marginalização.
No início dos anos 1970, vários fatores contribuíram para o fim do movimento:
- A censura militar, que proibia exibições e perseguia cineastas.
- O desinteresse do público e do mercado exibidor.
- A dificuldade de financiamento e a precariedade técnica.
- O exílio forçado de cineastas centrais.
Alguns diretores migraram para outros estilos. O caso mais emblemático foi o de Neville d’Almeida, que rompeu com a marginalidade ao lançar A Dama do Lotação (1978), enorme sucesso comercial com Sônia Braga.
Legado e Recepção Posterior
Apesar de breve, o Cinema Marginal exerceu influência duradoura. Na década de 1970, já era cultuado em mostras paralelas como a Semana do Cinema Maldito e a Mostra do Cinema Marginalizado Brasileiro.
Mais tarde, críticos como Ismail Xavier e Ivana Bentes resgataram o movimento como peça-chave para compreender a modernização estética do cinema nacional. Suas marcas podem ser vistas em cineastas posteriores como Cláudio Assis, Karim Aïnouz e no próprio Júlio Bressane, que manteve sua produção até hoje.
Ao contrário do underground americano, que se assumia como marginal por opção, o Cinema Marginal brasileiro foi marginalizado pelo Estado e pelo mercado. Essa distinção é crucial para entender sua posição singular na história do cinema mundial.
Conclusão.
O Cinema Marginal foi menos um movimento coeso e mais uma constelação de experiências radicais. Seu impacto não se mede apenas pelos filmes produzidos, mas pela capacidade de desafiar convenções estéticas, questionar estruturas de poder e incorporar a precariedade como linguagem.
Hoje, essas obras sobrevivem como testemunhos de uma época de repressão e invenção, em que a rebeldia estética dialogava com a resistência cultural. Como escreve Bernardet, tratou-se de “um cinema contra, e por isso mesmo, profundamente necessário”.