LUIZ CARLOS LACERDA - RESPONDE ÀS 7 PERGUNTAS CAPITAIS
Luiz Carlos Lacerda, nascido em 15 de julho de 1945 no Rio de Janeiro, é cineasta, roteirista e produtor. Iniciou sua carreira aos 19 anos como assistente de direção e teve formação prática nos sets de Nelson Pereira dos Santos. Atuou na produção de filmes como Chuvas de Verão (1978), Eu Te Amo (1981) e O Homem da Capa Preta (1986).
Estreou como diretor com Mãos Vazias (1971), baseado em romance de Lúcio Cardoso. Também trabalhou com publicidade, TV e realizou cerca de 30 curtas e vídeos sobre figuras da cultura brasileira. Foi professor de cinema em Cuba (1992–1993) e na Universidade Estácio de Sá, a partir de 1999.
1) É comum lembrarmos com carinho do início da nossa relação com o cinema. Os filmes ruins que nos marcaram, os cinemas frequentados (que hoje, provavelmente, estão fechados), as extintas locadoras de VHS e DVD que faziam parte do nosso cotidiano. Conte-nos um pouco de como é sua relação com a 7ª arte. Quando nasceu sua paixão pelo cinema?
L.C.L.: Nasci num ambiente cinematográfico. Meu pai, João Tinoco de Freitas, reunia os amigos cineastas do Partido Comunista todo domingo em nossa casa em Copacabana, em torno de um almoço que ele próprio preparava. Frutos do mar comprados no velho Mercado da Praça XV eram o pretexto para ele, Nelson Pereira dos Santos, Ruy Santos e Alex Vianny, com suas esposas e seus filhos, discutirem política e cinema.
Ele era produtor, realizou Dois Artistas (documentário sobre seus amigos Portinari e Villa-Lobos), foi um dos fundadores com Pedro Pomar, Ruy Santos e Oscar Niemeyer da Liberdade Filmes (do Partido), produziu 24 anos de luta e Comício com Prestes; e como produtor independente, anos depois, os longas Almas adversas, um argumento de Lucio Cardoso, e A mulher de longe (filme inacabado dirigido pelo romancista), Balança mas não cai (que trouxe para o Rio Nelson Pereira dos Santos para ser o assistente) e o primeiro filme do jovem Nelson, o polêmico Rio, 40 graus – longa inaugural e embrião do que viria a ser o Cinema Novo.
Nunca fui cinéfilo. Assistia aos desenhos animados de Tom & Jerry, os musicais da Metro, e, através de meu pai, os filmes do Neorrealismo italiano que influenciaram as obras autorais do cinema brasileiro, muitas delas gestadas nesses almoços na minha casa. Mas, pelas dificuldades econômicas que meu pai enfrentava, não pensava viver disso. Eu, como era poeta desde menino, e gostava de escrever (eram as redações que me garantiam boas notas!) Pretendia ser jornalista – que era a profissão de muitos escritores, como Antonio Callado, Nelson Rodrigues, etc.
O Cinema surgiu, depois do golpe militar, quando, diante do sonho de um Brasil que emergia (O Cinema Novo, a Brasília de Niemeyer, a Bossa Nova, o Teatro de Arena) ter acabado, fiquei sem perspectiva e aceitei – por mera curiosidade – o convite de Ruy Santos de ser seu assistente em Onde a terra começa (1965), filme rodado em Arembepe. Depois, veio a paixão.
2) Tyler Durden disse em Clube da Luta: "As coisas que você possui acabam possuindo você". Ser colecionador é algo que se encaixa neste conceito, já que você se torna escravo do colecionismo. Coleciona filmes, CDs ou algo relacionado à 7ª arte?
L.C.L.: Tenho o que considero essencial: os filmes que fiz, os de meu mestre Nelson Pereira dos Santos, algumas joias de Visconti, Pasolini, Scola, Fellini, Rosselini, John Huston, Warhol, Gus van Sant, Luis Buñuel, Almodovar, e de meus ex-assistentes (Luciano Perez, Luiz Felipe Fernandes, da documentarista Karla Hollanda, do meu hoje Diretor de Fotografia Alisson Prodlik) e de alguns alunos que recebo regularmente de todo o Brasil, onde faço minhas Oficinas de Realização dedicadas à formação de jovens no audiovisual (Minas, Espírito Santo, etc.).
3) Leila Diniz atuou no primeiro filme que dirigiu. Ela, infelizmente, veio a falecer tragicamente, no ano seguinte (1972), vitimada por um acidente de avião. O que te motivou a fazer um filme sobre ela, 16 anos depois?
L.C.L.: Leila era minha melhor amiga. Nos conhecemos nos anos 60, nesse momento ao qual me referi, de efervescência cultural. Ainda adolescentes, fomos companheiros das noites de Copacabana e de Ipanema, dos teatros, das galerias de arte, dos lançamentos de livros e de filmes. Ficamos afastados um curto período e nos reencontramos nos filmes do Nelson, Fome de amor (1967) e Azyllo muito louco (1969).
Ela já é uma atriz popular, e eu sou assistente de direção. Nunca mais nos afastamos e ela protagonizou meu 1º longa, Mãos vazias. Foi com esse filme que fomos juntos ao Festival Internacional de Cinema de Adelaide (Austrália, 1972). Eu fui me exilar em Londres e ela voltava para o Brasil quando aconteceu a tragédia do acidente aéreo. Eu só soube uns 20 dias depois, porque estava entre Catmandu e a Índia. Foi um choque!
Passados 15 anos, olhei em volta e me dei conta da involuntária e espontânea revolução de costumes que Leila tinha promovido na sociedade brasileira (a democratização do palavrão, a dessacralização da imagem da gravidez, a prática do amor livre, a postura contra os preconceitos raciais, de orientação sexual e de gênero, etc.). E achei que era preciso creditar a ela essas mudanças de comportamento, contando a sua história e o alto preço que ela pagou por ser precursora.
4) "A vida é uma peça de teatro que não permite ensaios." Por isso, cante, chore, dance, ria e viva intensamente, antes que a cortina se feche e a peça termine sem aplausos." Considerando a reflexão, há alguma experiência em sua vida dedicada à arte que foi especialmente marcante?
L.C.L.: Esses anos em que fui assistente do Nelson em cerca de 6 longas, no nosso doce exílio em Paraty, aprendi que é preciso conhecer as regras básicas para transgredi-las, que é fundamental que o cineasta tenha um comprometimento visceral com a sua cultura (sendo assim será universal) e com o seu tempo. E que no Cinema não há como fugir da sua essência de Arte, de linguagem e de identidade.
É a diferença que o modernista Oswald de Andrade tentou explicar entre ÓCIO e NEGÓCIO. Ócio como conceito anti-acumulativo e anti-capitalista, da essência do Homem, e Negócio como a negação do Ócio. Cinema como expressão artística, não apenas como objetivo lucrativo. Quer ganhar dinheiro com isso? Abra um parque de diversões! Dá para fazer cinema e viver com dignidade.
5) Com relação às suas preferências cinematográficas, há uma lista dos filmes de sua vida? Um Top 10 ou mesmo o filme mais importante?
L.C.L.: Difícil tarefa. Começando por Sinfonia Amazônica, o 1º longa de animação brasileiro. Assisti ainda criança e me dei conta de que podíamos falar a nossa língua e ver na tela os animais brasileiros (o jabuti, a onça) e os indiozinhos e contar nossas histórias, nossas lendas.
Outro foi “Ladrões de bicicleta”, o clássico do Neorrealismo italiano, onde caiu a ficha de que não era só com musicais alegres e coloridos que podíamos nos emocionar, mas principalmente com filmes onde as questões sociais se apresentavam. E os diversos filmes dos diretores já citados.
6) Seu filme "Introdução à Música do Sangue" é um cinema de volta às origens, algo que um movimento como Dogma 95 propôs. Quais foram as maiores influências estéticas para sua narrativa?
L.C.L.: O Dogma 95 é um movimento europeu que segue uma “receita”. No final dos anos 40, o Neorrealismo, sem receita, mas com um Manifesto, pregava um Cinema fora dos estúdios, de filmes realizados nas ruas e nos interiores das casas de uma Itália arrasada pela Guerra e pelo Fascismo, com equipes reduzidas, pouca utilização de luz artificial, atores e não-atores como intérpretes. E surgiu o Neorrealismo.
No Brasil, o jovem Nelson Pereira dos Santos, utilizando-se do exemplo de seus colegas italianos, filmou Rio, 40 graus, no mesmo esquema de produção, mas respeitando as diferenças culturais, apesar das nossas semelhanças.
E, em seguida, os jovens cineastas Glauber Rocha, Paulo Cesar Saraceni, Joaquim Pedro de Andrade, Mário Carneiro, Dib Lutfi, Carlos Diegues, David Neves, Gustavo Dahl iniciaram o que veio a ser o Cinema Novo. Portanto, esse Dogma 95 aconteceu muitas décadas depois. E sua estrutura “esquemática” me passa um sentimento absolutamente distante do que seja uma proposta libertária ou revolucionária. Mesmo antes de Nelson e do Cinema Novo, o paulista José Medina e seu diretor de fotografia Gilberto Rossi já usavam luz natural e filmavam em locações, fora dos estúdios, no início do séc. XX.
O que aconteceu com o cinema realizado no Brasil, nos últimos 30 anos, é que o canto da sereia comercial, por diversas razões mercadológicas, seduziu os nossos produtores, influenciados pelo esquema industrial da TV e pelo sonho de ganhar muito dinheiro. As grandes empresas de equipamentos que se formaram para atender às demandas dos filmes publicitários e da teledramaturgia também têm a sua responsabilidade nisso: começaram a querer “disputar” com o cinema comercial americano.
Coisa impossível (porque eles têm o domínio do mercado, das salas de exibição e das TVs) e já comprovadamente estéril, como, só para dar UM exemplo, aconteceu com a Vera Cruz nos anos 50. Não será copiando que nos tornaremos “vendáveis”. O que faz a diferença de cinematografias ascendentes como a chinesa, coreana, iraniana e latina é a sua característica própria. O conteúdo é universal, fala do Homem, a forma é específica, retrata as diferenças culturais. Esse multiculturalismo é o que tem despertado interesse. Ele está nas TVs a cabo, nas reportagens também.
O problema de espaço no mercado exibidor é o mesmo de há 60, 70 anos, quando os Estados Unidos ganharam a II Guerra e se deram conta de que o cinema seria o instrumento para vender seus produtos. A partir do American way of life viriam os eletrodomésticos, os carros, a Coca-Cola, o cheeseburger, a calça jeans, as marcas de cigarros e os hábitos culturais. O Departamento de Estado americano criou um Programa de Governo para incentivar a tal Política de Boa Vizinhança, e sob sua orientação o Walt Disney fez vários filmes, criando até o personagem do Zé Carioca, um papagaio. Levaram a Carmen Miranda e a descaracterizaram.
Desde essa época, 70% dos lucros dos estúdios americanos são oriundos do mercado exibidor brasileiro (salas, TVs, e todas as mídias) e, se não houver um desejo e um programa político de Governo (como houve na época da estatal Embrafilme), jamais ocuparemos com horários dignos e com espaço midiático o mercado que deveria ser dos brasileiros e exibir as imagens produzidas pelos brasileiros.
Se de um lado a produção de filmes no Brasil tem sido marcada por uma política de estímulo aos filmes comerciais, os blockbusters brasileiros, ou as globochanchadas, como apelidaram o gênero há uma efervescência de novos cineastas, resultante da democratização promovida pela revolução tecnológica. As tentativas de alguns críticos travestidos de curadores, apressados em transformar esse positivo e indiscutível fenômeno em “movimento”, vão na contramão do que isso significa.
Se o Cinema Novo pontificou “uma câmera na mão e uma ideia na cabeça”, o que parece caracterizar as novas gerações de cineastas brasileiros é justo o contrário: muitas ideias nas muitas cabeças e câmeras onde nós quisermos. Inclusive nos tripés! Claro que, como em toda cinematografia, e o grande e salutar volume de filmes, o que vai ficar só a História testemunhará.
Meu filme Introdução... é o exercício da comprovação de que o Cinema brasileiro também pode continuar a ser artesanal. A luz que banha o nosso território é a mesma que fez o pintor Eduard Manet, então um grumete da Marinha francesa em visita ao Brasil, dizer a frase que se tornou a pedra fundamental do Impressionismo europeu: “Pintura é luz!”. Logo, sob esse sol “de raios fúlgidos”, não precisamos de possantes e complicados refletores importados e de equipes imensas para manipulá-los.
Queria voltar à maneira de fazer cinema original de José Medina & Gilberto Rossi, e de Dib Lutfi. E consegui com um diretor de fotografia jovem e ousado, o mineiro Alisson Prodlik, e com uma equipe em sua absoluta maioria de jovens formados pelo Polo Audiovisual da Zona da Mata, sediada em Cataguases, que foi o principal patrocinador do filme.
Introdução à música do sangue se debruça sobre esse Brasil onde convivem o arcaico ao lado do contemporâneo. E até onde os sentimentos e os desejos reprimidos podem levar o homem. Os sentimentos também são arcaicos, estão na roça, no interior de Minas, e estão presentes no coração humano desde as tragédias gregas até a contemporaneidade.
7) Ao olhar para sua trajetória, qual aprendizado considera mais valioso e gostaria de compartilhar?
L.C.L.: A vida é curta, tente fazer aquilo que der maior prazer.
M.V.: Obrigado, amigo. A gente se vê nos filmes.