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MATHEUS NACHTERGAELE - RESPONDE ÀS 7 PERGUNTAS CAPITAIS

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Matheus Nachtergaele nasceu em São Paulo, em 3 de janeiro de 1968. Filho de belgas da classe média alta, perdeu a mãe, Maria Cecília, poetisa e musicista, aos três meses de idade, vítima de suicídio. Só aos 16 anos descobriu a causa da morte, ao ter acesso a uma coletânea de poemas deixados por ela.

Ingressou no teatro aos 20 anos, após ser aprovado em um teste para a companhia de Antunes Filho, quando ainda cursava Belas Artes. Em 1990, entrou para a Escola de Arte Dramática da USP, onde se formou em 1991. Ganhou projeção em 1992 com a companhia Teatro da Vertigem, destacando-se no premiado espetáculo Livro de Jó, dirigido por Antonio Araújo.

Vamos às 7 perguntas capitais:



1) É comum lembrarmos com carinho do início da nossa relação com o cinema. Os filmes ruins que nos marcaram, os cinemas frequentados (que hoje, provavelmente, estão fechados), as extintas locadoras de VHS e DVD que faziam parte do nosso cotidiano. Conte-nos um pouco de como é sua relação com a 7ª arte. Quando nasceu sua paixão pelo cinema? 

M.N.: A primeira coisa de que me lembro com clareza é de ter visto, ainda na infância, uma crucificação de Cristo na televisão movida a bateria, no sítio de Atibaia onde moravam meus avós belgas. Chorei muito! Minha avó, então, precisou me explicar um pouco do que se tratava. Essa é minha primeira lembrança, embora eu não saiba que filme era, vi na televisão.

Depois, me recordo de estar numa sala de cinema, ainda muito menino, assistindo Marcelino Pão e Vinho. Minha tia Ana nos levou. Não me lembro da história inteira, mas nunca esqueci o menino que foi picado por uma cobra e morreu.

Em seguida, vieram as imagens que vi na casa da família da minha mãe, Maria Cecília, que morreu quando eu ainda era um bebê. Não conheci minha mãe, ou, pelo menos, não me lembro racionalmente dela.


Mas, nessa festa na casa da família dela, foi projetado na parede um filme em super-8, caseiro, que mostrava a comemoração. Entre as crianças daquela festa, havia uma em especial que me chamou a atenção: moreninha, com vestido branco de renda, típico de menina. Era minha mãe. Minha mãe sorrindo, se mexendo, aproximando-se da câmera, acenando. Minha tia Margarida se aproximou de mim e disse: “Essa pretinha aí é sua mãe”. Fiquei profundamente emocionado. E talvez tenha compreendido, naquele momento, que tipo de milagre o cinema é capaz de realizar.

A partir daí, veio o amor pela arte. A televisão aberta da minha geração oferecia uma formação bonita, exibindo, geralmente tarde da noite, grandes filmes, grandes obras de arte. Assisti a muitas coisas lindas: Bergman, Orson Welles, Mazzaropi... muita coisa bonita mesmo!

Mais tarde, já na faculdade de Artes Plásticas, na FAAP, em São Paulo, passei a frequentar cineclubes e salas de cinema, escolhendo os filmes que queria ver com a minha turma de artistas. E depois disso, veio o envolvimento total: ser ator e amar o cinema.

Veja que as minhas primeiras lembranças de cinema estão ligadas à intimidade familiar, ao sentimento religioso e à piedade.

M.V.: Com toda razão.


M.N.: Não posso deixar de dizer que o desenho animado sempre me impressionou muito. Quando fiz 15 anos, meu pai me perguntou o que eu queria de presente de aniversário, e eu pedi um curso de animação com Sergio Tastaldi, que acontecia no MIS, o Museu da Imagem e do Som, em São Paulo. Fiz o curso muito antes de pensar em ser ator. Ou seja, a animação me acompanha desde cedo.

Continuo sendo um "assistidor" fanático de animações. Não apenas dos clássicos estrangeiros, mas também de filmes experimentais. Adoro animação brasileira, e quando me chamam para dar voz a algum personagem de um filme brasileiro de animação, fico muito, muito feliz! Eu sou um pouco menino. Gosto de desenho de bicho e de flor.


2) Com relação às suas preferências cinematográficas, há uma lista dos filmes de sua vida? Um Top 10 ou mesmo o filme mais importante? 

M.N.: Aaahhhh. As listas ... É difícil não cair na tentação de eleger os filmes mais queridos. Mas meu gosto é tão eclético, vai de Dodeskaden, do Kurosawa, até A Noviça Rebelde, de Robert Wise; de Bambi, da Disney, até La Luna, de Bertolucci.

Se eu me restringir às coisas que venho devorando durante a quarentena, e isso talvez seja mais interessante, tenho mergulhado na obra de Maurice Pialat e estou completamente apaixonado por um cineasta americano do cinema independente, do cinema mais arriscado: John Cassavetes. Consegui aqui uma caixa com alguns filmes do Pialat e outra com obras do Cassavetes, e é isso que tenho assistido, quase como um estudo despretensioso, mas profundo, aproveitando o silêncio da quarentena.


3) Você segue um método específico para dar vida aos seus personagens? Há diferenças marcantes quando se trata de compor figuras tão distintas como o Cenoura (de Cidade de Deus) e o João Grilo (O Auto da Compadecida)? 

M.N.: O artesanato do ator, é claro, obedece a algumas regras, e cada um tem seu método. Mas também cada personagem, cada diretor, cada meio de expressão, teatro, cinema, TV, séries, pede um tipo diferente de aproximação. Cada veículo onde o ator atua exige um procedimento específico na construção do personagem.

Confesso que não tenho um método fixo, apesar de ser formado pela Escola de Arte Dramática. Acredito muito na importância da formação do ator, e, infelizmente, ela tem sido bastante desprezada na pressa do mundo atual. Acho isso um grande erro. Sempre achei bonito quando o ator é formado desde a base, com rigor.

Fiquei um ano no Centro de Pesquisas Teatrais do Antunes Filho e, depois, dois anos na Escola de Arte Dramática da USP, em São Paulo, antes de começar minha vida profissional no Teatro da Vertigem. Não cheguei a me formar oficialmente, não tenho diploma, mas estudei muito, tanto com o Antunes quanto no IAB (Instituto Artístico Brasileiro).


Estudei os métodos principais, como Stanislavski, Brodowski; mergulhei nos textos teóricos de Cocteau e sou um leitor atento de Antonin Artaud. Posso dizer que sou resultado dessas experiências formativas, misturadas a um desejo profundo de estar absolutamente identificado com os personagens.

O personagem me interessa como plataforma para algo que desejo dizer. Apesar de adorar caracterizações profundas, sempre procuro estar totalmente identificado com o que estou interpretando. Basicamente, todos os personagens são "eu", se estivesse naquela situação.

Nesse sentido, João Grilo e Sandro Cenoura podem até ser considerados parecidos. Mas o processo de construção foi muito diferente. Explico: o Guel Arraes é um diretor extremamente aplicado. Ele prepara muito antes de filmar, adora escrever, fazer storyboards, e oferece aos atores muitas horas de ensaio, além de extenso material bibliográfico e iconográfico para a construção dos personagens.

No caso de João Grilo, estudei os arquétipos desse personagem: de Lazarillo de Tormes, passando pelos arlequins, até os folhetos de cordel que retratavam João Grilo antes mesmo de Ariano Suassuna registrá-lo em O Auto da Compadecida. Ensaiamos por muitas horas, Selton e eu, e depois filmamos em Cabaceiras, na Paraíba. Fiquei muito próximo da população local, buscando o sotaque de forma profunda. Também li a obra de Ariano, enfim, fiz o dever de casa.


Já em Cidade de Deus foi completamente diferente. Fernando Meirelles me convidou, mas, em certo momento, teve receio de me escalar, porque eu havia ficado conhecido com O Auto da Compadecida e Hilda Furacão. Ele queria um elenco formado quase exclusivamente por atores desconhecidos do grande público, muitos deles moradores de comunidades do Rio de Janeiro, onde o filme seria rodado.

Tivemos um encontro em que ele me disse: “Vou me arriscar colocando você. Gosto muito do seu trabalho, mas precisamos pensar em como você pode existir como personagem nesse universo.” Ele estava com o roteiro em mãos, mas quando contou que os atores fariam oficinas, que a Fátima Toledo trabalharia com os menos experientes e que não haveria entrega prévia de roteiro, que tudo seria ensaiado cena a cena, eu disse: “Não me entregue o roteiro. Quero fazer exatamente como eles.”

E assim nasceu o Sandro Cenoura. Participei de todos os workshops. Não trabalhei tanto com a Fátima, porque ela tinha 180 personagens sob sua responsabilidade, mas estive em alguns ensaios, participei dos laboratórios, dividia o caminhão camarim com o elenco na Cidade de Deus. Não tive nenhuma regalia. Não tive o roteiro do filme, como todos os outros. Fiquei muito próximo de todos, eu, Seu Jorge, estávamos sempre colados neles. Ele já conhecia bem aquele universo, mas ainda assim era preciso estar ainda mais imerso.


Esses dois personagens marcaram minha vida, e a vida de quem os assistiu também, o que me deixa muito feliz. Sinto-me profundamente identificado com ambos, mas cada um foi acessado de uma maneira, por um procedimento diferente. No fundo, o que sempre me guia é o que eu já disse: meu método é a identificação total, até que o texto, a dramaturgia, se tornem na minha boca um depoimento em primeira pessoa. Eu gosto de fazer o personagem em primeira pessoa, independentemente do sotaque, da sexualidade, da classe social, da religiosidade, da alegria ou da tristeza que ele carrega.

Comecei falando sobre o artesanato. Um artesão, um marceneiro, por exemplo, que fosse fazer uma cadeira, precisaria conhecer minimamente como se comporta cada espécie de madeira: qual é mais dura ou mais macia para trabalhar, como usar as ferramentas, a maquinaria para cortar, lixar e aplicar tinta. O ator também tem seus manuais, suas técnicas. Mas, no fim das contas, o grande trabalho acontece no espírito. Por isso, é tão complexo falar sobre isso.


4) "A vida é uma peça de teatro que não permite ensaios. Por isso, cante, chore, dance, ria e viva intensamente, antes que a cortina se feche e a peça termine sem aplausos". Considerando a reflexão, há alguma experiência vivida no meio artístico que foi especialmente marcante?

M.N.: Sobre histórias curiosas de set, eu poderia contar milhares. Tenho tantas! Acho que cada filme rende várias. São muitos os momentos divertidos e inusitados no cinema, no dia a dia de uma filmagem, que dariam ótimas histórias. Por isso, também é difícil escolher apenas uma. Tenho lembranças engraçadas e marcantes de Amarelo Manga, do Cláudio Assis; de O Auto da Compadecida e de O Bem-Amado, ambos dirigidos pelo Guel Arraes.

Tenho histórias divertidíssimas e inusitadas de muitos sets, mas acho que a mais emocionante aconteceu no filme que eu dirigi: A Festa da Menina Morta. Paulo José, casado com Kika Lopes, que era figurinista do longa e uma grande profissional do cinema e do teatro brasileiros, foi nos visitar em Barcelos, no alto Rio Negro, onde filmávamos. Ele já estava com Parkinson.

Não havia um personagem previsto para ele, mas, ao chegar, ele disse: “Eu adoraria fazer parte”. Ele ficaria apenas alguns dias, e justamente havia cenas a serem rodadas naquele período, já nos momentos finais da produção. Paulo, inclusive, estava presente na festa de encerramento das filmagens.


Então, reuni todo o resto de energia criativa que me restava e inventei para ele um padre, com algumas cenas. Pedi que escolhesse uma poesia que quisesse dizer no filme. Ele acabou participando da cena da fogueira, da oração final do Santinho, era mais fácil encaixá-lo ali. Mas também havia uma cena de lavagem da casa do santo, e pensei: ele pode estar do lado de fora, como um padre católico que, de alguma forma, busca participar do ritual da seita da Menina Morta.

Ele escolheu um poema belíssimo. Fizemos um plano-sequência que terminava com ele, e tudo em um único take. Normalmente, gravávamos dois takes, já que filmávamos em película. Estávamos muito isolados, longe de tudo, então sempre trocávamos o chassi e fazíamos uma segunda tomada por segurança, no caso de algum risco no negativo ou falha técnica.

Eis que, na segunda tomada, no exato momento em que a câmera chega ao Paulo José, surge uma rajada de vento, um vendaval tão bonito que toda a cena dele acontece em meio a uma ventania intensa, quase um pequeno ciclone, com muitas folhas rodopiando.

A bata do padre que ele usava dançava ao vento, as árvores ao redor balançavam, as bandeirinhas do cenário da festa chacoalhavam vigorosamente. Foi um milagre. É a única cena em que o Paulo José tem fala no filme, e ela acontece no meio de um vendaval. Essa história foi realmente muito bonita.


5) Imagine o cenário: você é um ator (de qualquer país) no set de filmagem de um filme memorável. Qual seria o ator, em qual filme, e por que essa experiência seria tão marcante para você?

M.N.: Vou puxar sardinha para o nosso lado aqui no Brasil. Acho o cinema brasileiro maravilhoso desde sempre, desde Mário Peixoto, com o filme Limite, até os dias de hoje, com as obras dos cineastas mais jovens. Sou um grande admirador do nosso cinema. Seria injusto escolher alguém de fora. Digo com convicção que adoraria ter estado num set de filmagem, com uma câmera na mão e uma ideia na cabeça, ao lado de Glauber Rocha. Acho que teria sido uma experiência linda.

Faço questão de responder a essa pergunta homenageando um mestre nosso. Mas poderia ter sido um filme do Mazzaropi, ou do Zé do Caixão, poderia ter sido tanta coisa! Tive muitas honras na vida: trabalhei com grandes cineastas brasileiros, alguns deles por diversas vezes, como Walter Salles, Guel Arraes, Cláudio Assis, Lírio Ferreira, Eliane Caffé. Não me faltaram alegrias.


6) Fazer cinema envolve muitas variáveis. Esforço, investimento, paixão, talento... E a sinergia destes elementos faz o resultado. Qual trabalho em sua carreira considera o melhor? E, em contrapartida, carrega algum arrependimento?

M.N.: Dediquei-me de corpo e alma a cada personagem. Das séries, minisséries e novelas que fiz, tenho bastante orgulho. É claro que a gente tem alguns arrependimentos, processos que não foram tão bonitos, momentos em que foi preciso aceitar um trabalho por necessidade financeira, mesmo sem muita vontade. Ainda assim, sempre tive a honra de ser chamado para projetos bonitos.

Não me arrependo de nada, de fato. O que me pesa são os momentos em que não estive inteiro em algum trabalho ou quando não pude aproveitar completamente o personagem, isso também aconteceu. Tenho muito orgulho dos filmes pequenos, dos personagens discretos, pouco percebidos pela grande mídia, mas que deixam um testemunho eterno sobre quem nós somos.


Acredito que o ser humano possui algo lindo chamado vocação, e ela precisa ser atendida. A vocação é aquilo que você tem de melhor para oferecer, um talento que pode beneficiar o máximo de pessoas, inclusive a si mesmo. E acho que há um talento específico para o ator, esse descendente das religiões, esse pastor profano, esse pai de santo arquetípico e moderno. Acredito, de fato, que o trabalho do teatro, da interpretação, da grande dramaturgia, e o trabalho dos atores, serve para o ser humano avançar, fazer catarses, rir e chorar de si mesmo, e seguir em frente.

É preciso vocação para a entrega do espírito, do corpo e da experiência humana para que o ator se realize por completo. Também é essencial estar atento à vocação dos projetos dos quais se participa. Tenho orgulho da grande maioria dos trabalhos que realizei. Orgulho do meu período de formação, que foi muito rígido e profundo.

Tenho muito orgulho do Teatro da Vertigem. Ali nós nos desenvolvemos intensamente como artistas, todos nós, sob a batuta de Antônio Araújo, mas também com a contribuição de muitos criadores em cada espetáculo: Paraíso Perdido, O Livro de Jó, Apocalipse. Tenho orgulho da retomada do cinema brasileiro, da qual participei com tanta energia e empenho, de ter estado nas mãos de tantos diretores interessados em explorar o Brasil profundo.


A retomada foi um momento bonito de reconstrução do cinema brasileiro e, de certa forma, também do Brasil. A retomada e o período mais bonito da história política recente do país coincidem, uma coisa interfere na outra. Também tenho muito orgulho do que fiz na televisão. Sempre bati o pé para estar em projetos belos, vocacionados, com diretores que compreendem a importância da TV. Mesmo nas novelas mais competitivas, sempre consegui personagens relevantes, simbólicos, arquetípicos.

Há cinco anos tenho me dedicado ao teatro com muita volúpia. Estive afastado por um tempo, em razão do cinema e da TV, mas retornei com um monólogo em que recito os poemas de minha mãe, Maria Cecília, que faleceu quando eu era um bebê. Chama-se Processo do Conscerto do Desejo.

Faço essa peça pelo Brasil há cinco anos e quero seguir com ela. Tenho convites para depois da pandemia, inclusive para apresentações fora do país. Também faço a peça Molière – Uma Comédia Musical, com Renato Borghi, um grande elenco de atores e músicos, dirigida por Diego Fortes, jovem diretor curitibano. É um musical antifascista, que também teve sua turnê suspensa pela pandemia, mas que pretendo retomar. Tenho novos projetos, muitos desejos. Quero atender, cada vez mais, ao chamado da vocação e estar ao vivo com as pessoas. O teatro, mais do que nunca, ganhou para mim um patamar especial como espaço de convivência humana.


7) Para finalizar, deixe uma frase ou pensamento envolvendo o cinema que representa você.

M.N.: "- Cinema não é para entreter, é para fazer sonhar.”
Wim Wenders

M.V.: Obrigado, amigo, a gente se vê nos filmes.

M.N.: Beijo, querido.




 
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