DOUTOR SONO (2019) - FILM REVIEW
Doutor Sono,
Introdução:Thais A.F. Melo
Texto: M.V.Pacheco
Revisão: Thais A.F. Melo
Você provavelmente já se sentiu sugado depois de um longo dia de trabalho onde esteve cercado de pessoas. Assim como, teve a mesma sensação após encontrar aquele seu parente ou vizinho invejoso?! Ou seja, se sentiu verdadeiramente vampirizado. Trataremos um pouco acerca do tema vampiro, para depois adentrar precisamente no foco deste post: a incrível adaptação de uma obra do mestre Stephen King: Doutor Sono.
Há uma grande variedade de vampiros no imaginário popular, e as representações dos mitos e lendas a respeito dessas criaturas, datam desde o surgimento das primeiras manifestações artísticas, assim como da invenção da escrita. Logo, pode-se dizer que o vampiro caminha lado a lado com a humanidade, mesmo que este esteja nas sombras - afinal, uma coisa é certa, os vampiros sempre foram ligados à superstição, ao mistério, à magia e ao próprio medo da morte.
Cada cultura lhe deu características próprias e nomes diferentes, mas sempre predominou nessas criaturas a necessidade de sobreviver através dos vivos: seja sugando-lhes o sangue, ou até mesmo, a energia vital. Quanto ao último, temos, por exemplo, o jiangshi - uma espécie de vampiro chinês, também conhecido como fantasma ou até mesmo zumbi. O jiangshi trata-se de um cadáver que foi reanimado e que sorve o QI dos vivos para sobreviver.
O QI é a própria força vital ou fluxo de energia que permeia o mundo e os seres vivos. Etimologicamente, o ideograma QI é formado de elementos que configuram a imagem do vapor que sobe do arroz quando este está sendo cozido e quando se levanta a tampa da panela. Logo, este termo pode traduzir-se como vapor, energia, força, vida, etc. Finalmente chegamos ao ponto central de nossa conversa, aonde mais ouvimos falar do vapor, e também de vampiros?
Em Doutor Sono, temos o grupo de vampiros psíquicos intitulados True Knot. Assim como os jiangshi, esses vampiros espirituais sobrevivem sorvendo o vapor dos vivos, especialmente do vapor de crianças iluminadas. Veremos posteriormente, mais a respeito dos True Knot, assim como do próprio filme em si a seguir.
Pensar em uma continuação de O iluminado, obra-prima de Stanley Kubrick lançada em 1980 parece heresia. Mas esse pensamento se dilui quando pensamos que ele adapta o romance de Stephen King, lançado somente em 2013. E se há alguém herege nessa história é sem dúvidas King, que além de dar continuidade a uma história que seria fatalmente adaptada para o cinema ou TV, ele já expressou descontentamento com a versão de Kubrick, demonstrando preferência pela minissérie lançada em 1997.
Mas que ótimo que ele seja herege, já que o material escrito é ótimo e a adaptação digna de figurar entre as melhores. Não à toa, a direção ficou por conta de Mike Flanagan, queridinho das séries de terror: A Maldição da Residência Hill (2018), A Maldição da Mansão Bly (2020) e Missa da Meia-Noite (2021).
Foi preciso muita negociação para fazer esse filme. Mike Flanagan teve que convencer Stephen King de que, apesar de sua própria aversão por O Iluminado (1980), de Stanley Kubrick, o público estava mais familiarizado com essa versão do que com O Iluminado (1997) e preferia o filme à minissérie. Portanto, este tinha que ser uma continuação direta do clássico de Kubrick.
O Iluminado (1980) tomou muitas liberdades com o romance homônimo de Stephen King (uma das razões pelas quais ele não gostou), então o público geralmente se divide entre fãs do livro e fãs da adaptação para o cinema. De acordo com Ewan McGregor, o maior desafio era fazer uma sequência que satisfizesse esses dois grupos. King disse que gostou da sequência, assim como muitos dos puristas de Kubrick; então Flanagan parece ter feito bem o seu trabalho.
Em Doutor Sono, na infância, Danny Torrance conseguiu sobreviver a uma tentativa de homicídio por parte do pai, um escritor perturbado por espíritos malignos do Hotel Overlook. Danny cresceu e agora é um adulto traumatizado e alcoólatra. Sem residência fixa, ele se estabelece em uma pequena cidade, onde consegue um emprego no hospital local. Mas a paz de Danny está com os dias contados a partir de quando cria um vínculo telepático com Abra, uma menina com poderes tão fortes quanto aqueles que bloqueia dentro de si.
Voltamos então ao grupo de vampiros psíquicos True Knot, ao qual já abordamos brevemente na introdução. O grupo é encabeçado por Rose the rat, brilhantemente interpretada por Rebecca Fergurson. No filme, vemos que a maioria dos indivíduos está doente e enfraquecido pela falta de bons vapores. Sendo a única alternativa, saírem a procura de iluminados para se alimentar -especialmente crianças.
O vapor é extraído no último sopro de vida da vítima, após intensa tortura, como se o sofrimento o purificasse. É quando descobrem Abra Stone (Kyliegh Curran) que possui uma abundância de poder, ou seja, um banquete de vapor para os vampiros famintos.
Diretor aplicado em recriar...
Mike Flanagan refez meticulosamente os cenários do Overlook Hotel a partir de plantas adquiridas da propriedade de Stanley Kubrick. A sala do Dr. John Dalton (Bruce Greenwood), na qual Danny é entrevistado para o cargo de auxiliar, é idêntica à sala de Stuart Ullman, onde Jack Torrance foi entrevistado para o cargo de zelador em O Iluminado (1980), até o cor de tinta e a bandeirinha americana no lado direito da mesa.
A maioria dos elementos de O Iluminado (1980) foi recriada com cenários duplicados e atores semelhantes, embora três tomadas tenham sido reutilizadas: a tomada aérea da água e da ilha e as duas tomadas posteriores do carro passando pela estrada da montanha. As cenas foram degradadas, recoloridas como dia por noite e tiveram neve adicionada digitalmente.
Muitas das mesmas composições de cena e ângulos de câmera usados em O Iluminado (1980) foram empregados nas cenas do filme. Por exemplo, quando Dan Torrance (Ewan McGregor) está de ressaca e vomitando no banheiro, a tomada dele de baixo é a mesma de Jack Torrance (Jack Nicholson) tentando argumentar com sua esposa pela porta da despensa em O iluminado. Além disso, quando Dan se afasta de Rose (Rebecca Ferguson) subindo as escadas, é a mesma cena de Wendy (Shelley Duvall) subindo as escadas de Jack.
Na cena do hospital em que o gato Azzie (que é a abreviação de Azrael, o Anjo da Morte) pula na mesa na frente de Dan, antes que ele o siga para o que deveria ser um quarto vazio, ele larga a revista que estava lendo. É a mesma edição de janeiro de 1978 da revista Playgirl, que seu pai, Jack Torrance, leu no saguão do The Overlook enquanto esperava por Stuart Ullman e Bill Watson em O Iluminado (1980).
Aliás, Azzie é baseado em Oscar, um gato malhado que reside no Steere House Nursing and Rehabilitation Center em Rhode Island. Oscar parece capaz de prever a morte iminente de pacientes terminais. Ele vai sentar ou dormir em suas camas por algumas horas antes do paciente morrer. Desde a publicação de um artigo com Oscar em uma revista médica da Nova Inglaterra em 2007, Oscar esteve presente em mais de 100 mortes de pacientes. Em 2013, Oscar sofreu uma reação alérgica e morreu por alguns segundos antes de ser reanimado por veterinários.
As "Moscas da Morte" que Dan vê são tiradas diretamente do romance e explicadas posteriormente no filme. Elas estão ligadas simbolicamente às moscas soltas por John Coffey (Michael Clarke Duncan) sempre que cura uma pessoa de uma doença em À Espera de um Milagre (1999), outra adaptação de Stephen King.
O 'armário' mental onde Abra e Rose guardam todas as suas memórias são semelhantes ao 'armazém de memórias' de O Apanhador de Sonhos (2003), outra adaptação de um romance de Stephen King. Ambos os conceitos são extremamente semelhantes ao 'palácio da memória/mente' popularizado por Sherlock (2010) e Hannibal (2013). É uma técnica mental para armazenar informações que remonta à Roma antiga.
Aliás, há um detalhe pertinente e bastante curioso no filme. Quando Abra chega à cidade, uma placa que diz "Elm Street" pode ser vista. O nome é da famosa rua do clássico "A hora do pesadelo", filme de terror sobre um assassino que mata adolescentes durante o sono.
No final, Doutor Sono é um filme sobre como lidar com os fantasmas do passado, e dependendo de quando os encara, paga o preço por deixar eles guardados tanto tempo. O aparente "fan service" da meia hora final, com a volta de Danny no hotel (em uma aula de reconstrução de um passado distante), não é gratuito. É curioso como, mesmo em um lugar já vivido, as peças do xadrez se movem de formas diferentes.
E o destino de Danny, nos faz pensar sobre o fato que, será que ele, como um iluminado, sabia que sua jornada terrena se encerraria ao voltar lá?
Mas caso ele não soubesse, fica para nós, telespectadores, uma importante lição: guardar nossos fantasmas em baús e enterrá-los no fundo, de nossas lembranças, nos rouba a capacidade de enfrentá-los.