A VIDA DE CHUCK (2024) - FILM REVIEW
Terminei de assistir à Vida de Chuck com um coquetel de sentimentos. E, em todos, eu estava perdido. Perdido na minha própria linha do tempo. Perdido entre a realidade e a narrativa que escolhi viver. Perdido até em saber se o que eu vivia era vida ou um caminho que fui sugestionado a seguir.
Sim, eu, hum, notei que o Pornhub caiu.
A Vida de Chuck é estruturada em três atos apresentados em ordem cronológica inversa. O primeiro deles, chamado Ato III, acompanha Marty (Chiwetel Ejiofor), um professor que presencia acontecimentos de escala apocalíptica: a internet deixa de existir, a Califórnia afunda no oceano e, em meio ao caos, painéis publicitários surgem sem parar parabenizando um desconhecido, Chuck Krantz (Tom Hiddleston), por sua aposentadoria. Os atos seguintes voltam no tempo para revelar diferentes facetas da vida de Chuck: um concentrado em um único dia e o outro em sua juventude, quando viveu com os avós.
O primeiro ato é o mais desconcertante e sombrio. Em vez de mergulhar de imediato na trajetória de Chuck, coloca o público ao lado de personagens aparentemente secundários que enfrentam o fim do mundo sem compreender a razão de estarem ali.
A reação das pessoas diante da catástrofe soa estranhamente realista: muitos mantêm a rotina, e a ausência de sites adultos provoca mais comoção do que desastres geológicos. Marty, por exemplo, desperta em um bairro ainda intacto, até que o vizinho Gus (Matthew Lillard), sempre animado, comenta sobre um enorme buraco que engoliu a rua, paralisando o trânsito.
Gus relembra os primeiros dias de revolta coletiva, quando ainda havia resistência, mas agora resta apenas resignação. Acompanhamos, então, imagens de trabalhadores apáticos, caminhando sem rumo após abandonarem os carros. É nesse ambiente que se multiplicam anúncios de agradecimento a Chuck Krantz, embora ninguém saiba quem ele é.
Aos poucos, o filme levanta a pergunta que conecta os três atos: o que há de especial em Chuck para merecer tamanha reverência? A resposta é simples: nada em particular. Ou talvez o fato de estar vivo já seja suficiente. Chuck é um homem comum, apaixonado pelos musicais de Gene Kelly que assistia com a avó (Mia Sara) e que sonhou em ser dançarino, mas acabou se rendendo à estabilidade de uma carreira como contador. Não teve uma existência monumental, mas colecionou momentos que, para ele, foram memoráveis.
O segundo ato revela o lado mais leve da narrativa. Numa cena marcante, Chuck dança espontaneamente com uma jovem em meio a um rompimento (Annalise Basso) ao som de um músico de rua. A lembrança o conecta à avó e ao sonho abandonado de dançar. Mas a alegria logo se transforma em melancolia. Quando o músico pergunta por que ele parou, Chuck não consegue explicar. O instante reforça que viver é oscilar entre êxtase e frustração, entre dor e alegria.
Flanagan enfatiza justamente esse contraste. Em A Vida de Chuck, a rotina banal não é insignificante: ela é tão parte de quem somos quanto os raros momentos de euforia. Da mesma forma, tristeza e medo têm o mesmo peso que coragem e amor.
A análise da professora Richards ajuda a decifrar parte do enigma de A Vida de Chuck, mas não resolve tudo. Para compreender a espinha dorsal da obra de Mike Flanagan, é inevitável mergulhar nas páginas de Walt Whitman, especialmente no poema que tanto fascina a própria Richards e Marty Anderson. É ali que estão os paradoxos que moldam o filme.
É por isso que Deus fez o mundo... só isso.
Inspirado no livro de Stephen King lançado em 2020, o longa repete o estilo de Flanagan, conhecido por monólogos longos e reflexivos em séries como A Maldição da Residência Hill e Missa da Meia-Noite. Mas, desta vez, a força poética vem de fora. Whitman paira sobre cada ato da narrativa, assim como o protagonista Chuck Krantz, vivido por Tom Hiddleston, paira sobre os personagens que imagina. Marty, a ex-mulher Felicia (Karen Gillan) e a colega Bri (Rahul Kohli) existem dentro da mente de Chuck e desaparecem quando ele, em seu leito de morte, chega ao fim.
O diálogo com Canção de Mim Mesmo é inevitável. O poema, escrito como um épico centrado no próprio autor, pode soar narcísico à primeira leitura. Whitman celebra o cheiro de si mesmo, as caminhadas entre animais, a capacidade de se imaginar em corpos de todas as raças, gêneros e classes. É um hino ao ego, mas também um manifesto contra a homogeneidade de uma América em transformação. O excesso é, na verdade, uma tentativa de escapar das amarras de qualquer identidade única.
Em A Vida de Chuck, esse espírito se reflete na trajetória do protagonista. Marcado pela perda precoce dos pais e da irmã, o garoto encontra alegria apenas ao dançar com a avó. Continua a prática mesmo depois da morte dela, em desafio às advertências do avô pragmático (Mark Hamill), que o empurra para a contabilidade. O adulto que conhecemos mais tarde carrega em si todas essas versões: as que existiram, as que poderiam ter existido e as que só sobreviveram em pensamento.
Esse jogo de espelhos é reforçado pela estrutura do filme. Atores reaparecem em papéis diferentes, lembrando que cada encontro deixa marcas invisíveis. Pessoas que cruzam a vida de Chuck de forma quase imperceptível também estão ali, armazenadas em sua memória. À primeira vista, parece puro egocentrismo: transformar os outros em figurantes da própria história.
Mas Whitman oferece outra chave. Para ele, ninguém está acima dos demais. Cada conquista do “eu” deve poder ser reivindicada por todos. A multidão de Chuck, portanto, não é feita de subalternos, mas de iguais. Ele é personagem nos mundos deles, assim como eles são no dele.
O ápice emocional do longa não vem de um discurso, mas de uma dança. No segundo ato, Chuck se junta a um baterista de rua e a uma desconhecida chamada Janice Halliday (Annalise Basso). O trio se encontra por acaso, dança por algumas horas e nunca mais se vê. Ainda assim, o momento fica gravado na vida de todos.
A cena ecoa lembranças de infância com a avó, o consolo de Marty diante do apocalipse e a possibilidade de que qualquer gesto breve carregue um peso imenso. A cena da dança pontua o momento em que Chuck redescobre a vida ao perceber a morte chegando. É o momento catártico do personagem.
Durante a cena, ele percebe que o caminho traçado na vida era apenas ordinário, e a urgência de viver o faz relembrar que havia nele um brilho que se apagou.
O que Flanagan mostra, com a ajuda de King e Whitman, é que não há nada de extraordinário em Chuck Krantz. Ele é um contador comum, cheio de falhas e pequenas vitórias. Mas isso não importa. Contém multidões, assim como cada pessoa ao seu redor. A lição é clara: não é preciso ser herói ou gênio para ser vasto.
Basta existir.
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