HARDWARE: O DESTRUIDOR DO FUTURO (1990) - FILM REVIEW
Lançado em 1990, Hardware é uma das obras mais singulares do cinema de ficção científica britânico, um delírio visual e sonoro que funde Cyberpunk, horror e crítica social sob uma estética suja e claustrofóbica. Dirigido por Richard Stanley, o filme tornou-se rapidamente um cult, não tanto por seu sucesso comercial (limitado), mas por seu poder imagético e sua atmosfera sombria, que ecoa a paranoia tecnológica e o medo da desumanização urbana herdados dos anos 1980.
Com um orçamento modesto, Hardware sintetiza o espírito do cinema independente britânico da época, que procurava reinventar a ficção científica fora dos grandes estúdios e longe do brilho de Hollywood.
Enredo: uma distopia no ferro enferrujado do futuro
A história se passa em um futuro indeterminado, devastado por guerras nucleares e desastres ecológicos. O mundo é árido, sufocado por radiação e pobreza. O protagonista, Moses “Mo” Baxter (interpretado por Dylan McDermott), é um ex-soldado que agora sobrevive como mercenário e sucateiro. Ele compra os restos de um robô misterioso e leva as peças como presente para sua namorada, Jill (Stacey Travis), uma artista plástica que vive em um pequeno apartamento-laboratório em um prédio degradado da cidade.
Sem saber, Mo entrega a Jill os componentes de uma máquina de guerra experimental, o M.A.R.K. 13, um projeto militar banido por ter saído do controle. Quando Jill utiliza os fragmentos como material para uma de suas esculturas, o robô se reativa, reconstrói a si mesmo e inicia um massacre claustrofóbico dentro do apartamento. A partir daí, o filme se transforma em um pesadelo tecnológico de horror doméstico, em que a sobrevivência se mistura à paranoia, e a máquina torna-se o símbolo último da destruição humana.
Ferragens
Hardware é um filme de sensações; mais do que narrativa, ele aposta em textura, som e atmosfera. O cenário urbano é uma colagem de ferrugem, vapor e escuridão, uma espécie de mistura entre o Blade Runner de Ridley Scott e o Mad Max de George Miller, mas com a sujeira e o desespero de um pesadelo industrial. A fotografia de Steven Chivers utiliza uma paleta saturada, repleta de tons vermelhos, alaranjados e ocres, refletindo o calor e a radiação do mundo exterior, enquanto o interior do apartamento é iluminado por lâmpadas trêmulas e neons decadentes.
Richard Stanley, que vinha do cinema experimental e de curtas-metragens de tom poético e místico, injetou no filme uma energia punk, quase tribal. Ele constrói um universo que parece estar sempre prestes a se autodestruir. A sensação de confinamento é reforçada pelo uso da câmera próxima, do som distorcido e da montagem fragmentada. Há momentos em que Hardware se assemelha a um videoclipe de rock industrial, o que não é coincidência; Stanley era um apaixonado por música e trabalhou em videoclipes antes de fazer longas.
A trilha sonora é uma das grandes forças do filme: mistura metal, industrial e darkwave, com faixas de Ministry, Public Image Ltd., Fields of the Nephilim, Iggy Pop e Motörhead. O próprio Iggy Pop faz uma participação vocal como o locutor de rádio “Angry Bob”, que anuncia o colapso do mundo com sarcasmo e desespero, servindo como espécie de coro grego punk que comenta os eventos. Lemmy Kilmister, vocalista do Motörhead, também aparece brevemente como o barqueiro que ajuda Mo a atravessar o rio poluído da cidade.
Personagens à beira do colapso
Dylan McDermott, ainda no início de sua carreira, dá vida a Mo Baxter com uma mistura de estoicismo e trauma. Seu personagem é um homem que vive entre a nostalgia e a desilusão com o presente, um soldado que não consegue desligar-se do horror da guerra. Stacey Travis, no papel de Jill, é o verdadeiro coração do filme. Sua personagem começa como artista reclusa, mas evolui para sobrevivente feroz, enfrentando o robô assassino em uma batalha brutal dentro de seu próprio lar. Jill é também um símbolo de resistência e de criação, uma mulher que transforma sucata em arte e depois precisa transformar a arte em arma.
O elenco de apoio inclui John Lynch como Shades, o amigo drogado e hacker de Mo, e William Hootkins como Lincoln, o vizinho voyeur que observa Jill com intenções perversas, um personagem repugnante que reflete o lado mais sombrio do voyeurismo urbano e antecipa os temas de isolamento digital que seriam recorrentes em décadas seguintes.
Do Cyberpunk ao Body Horror
Para tomar forma, Hardware foi influenciado pela obra de Phillip K. Dick e filmes como "No mundo de 2020", de Richard Fleischer, e "Herança Nuclear", de Jack Smight, além de ecos de Blade Runner em alguns pontos. O filme também se assemelha bastante aos filmes de Terry Gilliam, principalmente nos cenários indoor, com sujeira e equipamentos misturados a fios e computadores.
Hardware nasceu em uma época em que o cinema ainda digeria o impacto de Blade Runner (1982) e O Exterminador do Futuro (1984). Stanley absorveu essas influências, mas deu a elas um tom mais niilista e artesanal. Se Ridley Scott e James Cameron criaram mundos futuristas polidos e grandiosos, Stanley optou pelo futuro sujo e corrompido, em que a tecnologia não liberta, mas condena.
A atmosfera é mais próxima do cyberpunk britânico literário, como o de J.G. Ballard e Michael Moorcock, do que da estética high-tech americana. O diretor também declarou ter se inspirado em “O Apocalipse de João”, em temas gnósticos e em ícones do ocultismo, sugerindo que o robô M.A.R.K. 13 seria uma alegoria do anticristo tecnológico, uma máquina criada pelo homem para destruir o próprio homem.
Visualmente, há influências do expressionismo alemão, principalmente nas sombras alongadas e nos contrastes de luz e metal, além do body horror de David Cronenberg, perceptível nas sequências em que a máquina se mistura a fluidos, sangue e carne humana. Em seu cerne, Hardware é tanto sobre o colapso da tecnologia quanto sobre a fusão entre o homem e a máquina, uma obsessão que ecoa desde Metropolis (1927) até Tetsuo (1989), lançado um ano antes e que Stanley admirava profundamente. Não à toa, Mo tem um braço mecânico.
Bastidores e curiosidades
O roteiro de Hardware foi inspirado em um conto em quadrinhos publicado na revista britânica 2000 AD, chamado “SHOK!”. (de Steve MacManus e Kevin O’Neill). No entanto, o crédito original não mencionava a HQ, o que levou a um processo judicial que a produção acabou perdendo, forçando a adição de crédito oficial nos relançamentos.
A influência dos quadrinhos da 2000 AD é perceptível em toda a estrutura do filme, desde o visual industrial até o humor negro e o tom niilista, muito próximos do universo de Judge Dredd.
O orçamento, estimado em 1,5 milhão de dólares, era extremamente baixo para uma produção de ficção científica. Richard Stanley filmou quase tudo usando sucata real e efeitos práticos. O robô foi construído com peças de metal e animado com mecanismos rudimentares e stop motion. O resultado é surpreendentemente convincente, e parte do charme cult do filme vem justamente de sua aparência artesanal e orgânica.
O diretor também fez uso criativo de filtros coloridos, fumaça e iluminação pontual para disfarçar limitações de cenário e criar uma atmosfera densa, quase alucinógena. Muitas cenas foram filmadas em condições de calor extremo, o que intensificou a sensação de claustrofobia. A própria atriz Stacey Travis descreveu as filmagens como “exaustivas e febris, como estar presa em um pesadelo metálico”.
Stanley filmou em Londres e em Marrocos (a bela cena inicial), seu país natal, e trouxe para o set uma energia quase xamânica. Conhecido por seu interesse pelo ocultismo e por rituais tribais africanos, o diretor costumava usar amuletos e realizar cerimônias simbólicas antes das filmagens, acreditando que o filme estava “invocando forças reais de destruição e renascimento”. Essa aura mística se reflete na linguagem simbólica de Hardware, que mistura ciência e misticismo, máquinas e divindades.
A produção tem ótimos efeitos e fotografia, fazendo uso de imagens que lembram "O Predador", além de uma magnífica trilha sonora. A faixa "The Order of Death", que tem como refrão "This Is What You Want... "This Is What You Get" é tão perfeitamente inserida na cena que o voyeur Mark 13 acorda e observa o sexo entre o casal, que, mesmo depois de quase 30 anos, a cena continuava viva na minha memória.
Interessante é que a cena toda é acompanhada por outro vizinho, também praticante intenso do voyeurismo com Jill — como mostrado em seu apartamento. Stanley na cena homenageia Hitchcock, neste sentido, em diversos momentos. Observe que várias cenas se aproximam dos olhos, que é uma característica comum dos filmes do mestre Alfred.
Richard Stanley: o alquimista da sucata
Nascido na África do Sul e criado em meio ao apartheid e à violência política, Richard Stanley trouxe para o cinema uma sensibilidade rebelde e espiritual. Antes de Hardware, ele dirigiu o curta Rites of Passage (1983) e o documentário Voice of the Moon (1990), sobre o Afeganistão, além de videoclipes para bandas de rock alternativo.
Seu estilo mistura misticismo, simbolismo apocalíptico e crítica social, com forte influência de Alejandro Jodorowsky e Werner Herzog.
Após Hardware, Stanley dirigiu Colecionador de almas (1992), um filme igualmente visionário, que mistura road movie e horror sobrenatural no deserto da Namíbia. Infelizmente, seu terceiro projeto, A Ilha do Dr. Moreau (1996) terminou em desastre após ele ser demitido do set, um episódio lendário na história de Hollywood.
Ainda assim, Hardware permanece como a obra mais pura e pessoal de Stanley: uma fusão entre poesia e sucata, profecia e pesadelo. O filme venceu festivais como Avoriaz de 1991 (efeitos), Fantasporto (diretor), além de concorrer em outras categorias nestes e em outros festivais. Quando estreou, Hardware dividiu a crítica. Com o passar dos anos, Hardware se tornou cult movie.
Hardware é, enfim, um filme sobre o fim do mundo como experiência íntima. Não há heróis, apenas sobreviventes tentando encontrar sentido entre os destroços. Num tempo em que o cinema de ficção científica tende à grandiosidade digital, o filme de Richard Stanley lembra que o apocalipse pode caber dentro de um apartamento e que o horror mais profundo não vem do espaço, mas das engrenagens que criamos dentro de nós mesmos.

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