O QUE FOI O REALISMO POÉTICO FRANCÊS
Vive la France
O Realismo Poético foi um dos movimentos mais marcantes do cinema francês, ganhando força a partir da segunda metade da década de 1930. Entre os diversos legados deixados pela cinematografia francesa ao mundo, poucos são tão significativos quanto este. A França não apenas foi o berço do cinema, como também teve a ousadia de romper com padrões tradicionais para consolidar a sétima arte como uma forma legítima de expressão artística. Desde as experimentações vanguardistas dos anos 1920 até a explosão criativa da Nouvelle Vague nos anos 1960, o país foi palco de revoluções estilísticas e narrativas que moldaram o cinema mundial.
Entre essas contribuições, destaca-se o Realismo Poético, uma vertente que floresceu entre os anos 1930 e 1940, refletindo influências do naturalismo literário, como o de Émile Zola. Filmes como O Atalante (1934) e A Grande Ilusão (1937) são exemplos emblemáticos dessa corrente: obras densas em psicologia, sofisticadas em termos visuais e profundamente conectadas com questões sociais.
Ao contrário de outros movimentos mais teorizados, o Realismo Poético não seguiu um manifesto ou doutrina formal. Era, antes, um esforço coletivo e intuitivo de retratar a realidade com um toque lírico, buscando uma representação que combinasse o realismo com uma estética delicada e emocional. Embora hoje o conceito de "estilo coletivo" tenha perdido força, é inegável que certos períodos da história do cinema foram marcados por impulsos criativos compartilhados e o Realismo Poético é um dos mais belos exemplos disso.
Os filmes desse período valorizavam o trabalho do roteirista, mesmo que essa função ainda não tivesse pleno reconhecimento profissional. Na maioria das vezes, os roteiros vinham das mãos de jornalistas, escritores de renome ou até mesmo dos próprios diretores. As tramas, geralmente situadas em um contexto urbano e operário, traziam elementos de drama policial e carregavam um tom trágico e sombrio, prenunciando a tensão e a derrota iminente da França na Segunda Guerra Mundial.
Cenário
O avanço tecnológico no campo do cinema proporcionou uma verdadeira revolução com a introdução do som sincronizado em 1927, ano em que o estúdio Warner Bros. lançou O Cantor de Jazz, considerado o primeiro longa-metragem falado da história. Esse marco transformou profundamente a maneira de fazer cinema.
Com a inclusão da fala nos filmes, abriu-se espaço para a utilização de técnicas narrativas oriundas da literatura, elevando a complexidade e o refinamento dos roteiros. Essa mudança valorizou o papel dos roteiristas dentro do processo criativo, ao mesmo tempo que reduziu a predominância do cinema autoral, típico das experiências estéticas das vanguardas dos anos 1920.
A partir desse novo contexto, escritores e profissionais da imprensa começaram a ser convidados a trabalhar na indústria cinematográfica, contribuindo com roteiros mais ancorados em questões humanas e sociais. Isso levou ao fortalecimento de temáticas realistas, em sintonia com o clima de instabilidade e transformação vivido na França entre as duas grandes guerras.
O Início
A grave crise econômica mundial do início dos anos 1930, desencadeada pela Grande Depressão, abriu espaço, a partir de 1934, para o surgimento de novos cineastas independentes na França, ao mesmo tempo, em que proporcionou o retorno de alguns nomes importantes do período do cinema mudo. Foi justamente nesse contexto que Jean Vigo realizou O Atalante, uma obra que retrata com lirismo o cotidiano de um casal em lua de mel a bordo de uma pequena embarcação, navegando por rios que cortam bairros operários da França.
Esse filme é amplamente reconhecido como o marco zero do realismo poético francês, pois representa uma ruptura clara com as propostas estéticas das vanguardas que haviam dominado o cenário cinematográfico francês até então.
Com o triunfo da Frente Popular nas eleições legislativas da França em maio de 1936, Léon Blum assumiu o cargo de Primeiro-Ministro, sendo um dos últimos chefes de governo da Terceira República (1870–1940). Em resposta à ascensão fascista na Europa, uma política de coalizão entre socialistas, comunistas e radicais foi adotada após resolução do VII Congresso Mundial da Komintern, organização internacional à qual a Frente Popular estava ligada.
Essa reconfiguração política teve reflexos significativos na produção cultural do período, especialmente no cinema, que passou a retratar com mais frequência narrativas centradas na classe trabalhadora, abordando os desafios enfrentados por operários e desempregados em busca de uma vida mais justa e humana.
Principais filmes deste período:
A grande cartada, de 1934, dirigido por Jacques Feyder
A bandeira, de 1935, de Julien Duvivier
Toni, de 1935, dirigido por Jean Renoir
A quermesse heroica, de 1936, de Jacques Feyder
O crime do Sr. Lange, de 1936, dirigido por Jean Renoir
Jenny, de 1936, de Marcel Carné
Camaradas, de 1936, dirigido por Julien Duvivier
A grande ilusão, de 1938, de Jean Renoir
A regra do jogo, de 1939, dirigido por Jean Renoir
O Meio
O fortalecimento do fascismo no cenário europeu após o término da Guerra Civil Espanhola provocou uma transformação no tom das narrativas cinematográficas da época. Os roteiros passaram a expressar uma visão mais sombria e desencantada do mundo, antecipando o sentimento de desesperança que tomaria conta da sociedade francesa durante a Segunda Guerra Mundial. Os personagens centrais dessas histórias geralmente vinham das margens da sociedade, muitas vezes criminosos ou fugitivos, que, presos em existências limitadas, lutavam inutilmente para escapar de seu destino miserável.
Principais filmes deste período:
O demônio da Algéria, de 1937, dirigido por Julien Duvivier
Hotel do norte, de 1938, de Marcel Carné
Cais das sombras, de 1938, dirigido por Marcel Carné
O fim do dia, de 1939, de Julien Duvivier
Trágico amanhecer, de 1939, dirigido por Marcel Carné
O Fim
Em 1939, a Segunda Guerra Mundial é declarada. Dois anos mais tarde, as tropas nazistas ocupam Paris. Os cineastas franceses partem para o exílio, pondo fim à escola do realismo poético francês.
O marco final do movimento cinematográfico são dois filmes:
O boulevard do crime, de 1945 e As portas da noite, de 1946, dirigidos por Marcel Carné
Legado
As temáticas de fatalismo e desigualdade social, centrais no Realismo poético francês, exerceram forte influência sobre o desenvolvimento do estilo Noir, um gênero marcado por tramas policiais que retratam indivíduos desencantados em meio a um cenário de corrupção e decadência moral.
Obras como Farrapo Humano (1946) e No Silêncio da Noite (1950) seguiram essa mesma linha, colocando no centro de suas narrativas figuras marginalizadas, presas a existências rotineiras e sem perspectivas, tal como nos primeiros exemplos do realismo poético.
Outro movimento claramente impactado por essa estética foi o Neorrealismo italiano, que emergiu como uma resposta ao contexto pós-fascista e à experiência traumática da Segunda Guerra Mundial. Diretores como Vittorio De Sica, com seu comovente Ladrões de Bicicleta (1948), deram visibilidade à dura realidade da classe trabalhadora urbana, marcada pela escassez de emprego e pelas dificuldades econômicas.
Já os diretores da Nouvelle vague, corrente revolucionária do cinema francês que ganhou força no fim dos anos 1950, mesmo utilizando protagonistas de conduta questionável, lembrando os personagens dos filmes da segunda fase do realismo poético, adotaram uma postura crítica em relação às produções que não refletissem a visão pessoal de um autor.
Com isso, resgataram a ideia de “cinema de autor” que havia perdido espaço com o realismo poético. Ainda assim, cineastas como Jean Vigo e Jean Renoir eram amplamente reconhecidos por essa nova geração como referências fundamentais.