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A LONGA MARCHA: CAMINHE OU MORRA (2025) - FILM REVIEW

 

A primeira morte de A Longa Marcha é tão gráfica e chocante que, só quando ela acontece, aparece o título do filme. Isso aos 21 minutos. Eu percebo que algo de profundamente inquietante nas distopias concebidas por Stephen King, mesmo quando ele se esconde por trás de seu pseudônimo Richard Bachman. A Longa Marcha (The Long Walk), publicado originalmente em 1979, é uma das obras mais intensas, psicológicas e cruéis de sua carreira. 

Escrito quando King ainda era jovem e incerto sobre o futuro, o livro antecipa temas que atravessariam toda sua literatura: a morte como espetáculo, o sadismo institucionalizado, a perda da inocência e o poder corrosivo da obediência.

Mais de quatro décadas depois, a história ganha corpo no cinema, transformando-se em uma das adaptações mais aguardadas e tematicamente desafiadoras do universo King. Sob a direção de Francis Lawrence (de Eu Sou a Lenda e Jogos Vorazes), o filme, que finalmente saiu do papel após anos de tentativas frustradas, traduz para a tela o que talvez seja uma das experiências mais angustiantes da literatura distópica moderna.

A origem 

O livro se passa em uma América alternativa, autoritária e militarizada. Cem jovens, escolhidos por vontade própria, participam da “Longa Marcha”, uma competição mortal promovida pelo governo. As regras são simples: devem caminhar sem parar, a uma velocidade mínima de 6,4 km/h. Quem desacelerar por mais de três advertências é “eliminado”, ou seja, executado no local. O último a permanecer em pé recebe “o prêmio”: tudo o que desejar pelo resto da vida.

Mas A Longa Marcha nunca foi sobre o prêmio. É sobre a jornada. O jovem Ray Garraty, protagonista do romance, representa o olhar humano em meio à barbárie. Conforme o caminho se estende, os competidores sucumbem não apenas ao cansaço físico, mas ao colapso psicológico. King constrói um estudo clínico sobre a perda da empatia e a naturalização da violência. Os espectadores aplaudem, apostam e celebram as mortes como se assistissem a um grande evento esportivo, um eco assustador do que hoje se vê nas redes sociais e na espetacularização da dor.

Escrito entre o final dos anos 1960 e o início dos 1970, o livro reflete um período em que os Estados Unidos viviam os traumas da Guerra do Vietnã, a desconfiança nas instituições e o culto ao espetáculo televisivo. King, ainda sem fama, canalizou o desencanto de sua geração num conto distópico sobre o poder e a submissão. A “caminhada” é tanto uma metáfora da juventude sendo sacrificada em nome do Estado quanto uma reflexão sobre o condicionamento social, um tema que o autor voltaria a explorar em O Concorrente (The Running Man), também assinado por Bachman e adaptado para o cinema em 1987 e 2025, conhecido por aqui como O Sobrevivente.

Das páginas para as telas.

A adaptação de A Longa Marcha foi uma verdadeira maratona de bastidores. Por décadas, o projeto ficou preso no limbo de Hollywood. Em 1988, George A. Romero chegou a ser cotado para dirigir a adaptação cinematográfica do romance, mas o projeto nunca se concretizou. Anos depois, em 2007, Frank Darabont, responsável por Um Sonho de Liberdade e À Espera de um Milagre, duas das mais celebradas adaptações de Stephen King, chegou a adquirir os direitos do livro, mas nunca concretizou o filme. O material era considerado “difícil de filmar”: a trama se passa quase inteiramente em estradas, com pouca ação convencional e um foco intenso em diálogos e deterioração psicológica.

Em abril de 2018, a New Line Cinema anunciou o desenvolvimento de uma nova adaptação. Como os direitos de Darabont haviam expirado, o cineasta James Vanderbilt assumiu o projeto como roteirista e produtor, ao lado de Bradley Fischer e William Sherak, da Mythology Entertainment.

No ano seguinte, em 21 de maio de 2019, foi revelado que André Øvredal dirigiria o filme. No entanto, em novembro de 2023, Øvredal deixou o cargo, substituído por Francis Lawrence. A essa altura, os direitos haviam passado para a Lionsgate após expirarem com a New Line.

Francis Lawrence, acostumado a lidar com narrativas de isolamento, sacrifício e sobrevivência, foi a escolha natural para comandar a adaptação. O roteiro ficou a cargo de JT Mollner (de Desconhecidos, que escreveu e dirigiu), que buscou equilibrar a fidelidade ao espírito do livro com um ritmo cinematográfico mais acessível. Na adaptação, o número de competidores é reduzido para cinquenta, com um representante por estado. Algumas mudanças narrativas também foram feitas, principalmente nos momentos finais.

O elenco reúne jovens promessas e nomes mais conhecidos em participações pontuais, um reflexo da própria narrativa, em que o protagonismo se dilui entre múltiplas trajetórias humanas. Cooper Hoffman, revelado em Licorice Pizza, interpreta Ray Garraty com uma combinação de ingenuidade e desespero. O “Comandante”, figura simbólica de autoridade e manipulação, ganha corpo na interpretação fria e carismática de Mark Hamill, cuja presença dá o tom de ameaça e controle que permeia toda a história. Ben Wang (de Karatê Kid Lendas) e David Jonsson (de Alien Romulus) completam o elenco de "reconhecíveis".

As filmagens ocorreram em locais isolados do interior do Canadá, escolhidos por sua geografia desolada e por permitirem longos planos de estrada cercados por florestas, uma estética que evoca tanto a vastidão quanto o aprisionamento. Lawrence optou por uma fotografia naturalista, evitando o espetáculo visual e privilegiando a sensação de exaustão e claustrofobia ao ar livre. É um filme de movimento constante, mas cuja verdadeira ação acontece dentro dos personagens.

O simbolismo da caminhada.

A caminhada, em Longa Marcha, é um ritual. Um experimento de obediência e resistência que expõe as fragilidades humanas diante da autoridade. A estrada torna-se um campo de provas moral: cada passo aproxima os participantes da morte e, paradoxalmente, da liberdade. 

No livro e no filme, o cansaço físico é a face visível de algo mais profundo: o desgaste existencial. A juventude, símbolo de energia e esperança, é destruída em nome de uma glória ilusória. Garraty, aos poucos, percebe que a caminhada não tem fim real; a promessa de um “vencedor” é apenas mais uma manipulação, um mito que mantém a engrenagem funcionando. O corpo dos competidores é transformado em instrumento político, um reflexo da sociedade que explora e consome até o limite.

O simbolismo é direto, mas poderoso. Uma Longa Marcha dialoga com obras como Battle Royale (2000) e Jogos Vorazes (2012), ambas igualmente centradas na espetacularização da violência juvenil. No entanto, há uma diferença crucial: enquanto nesses filmes há rebeliões e lutas visíveis contra o sistema, em A Longa Marcha o conflito é interno. O inimigo não é apenas o governo, é a própria necessidade humana de competir, de buscar aprovação, de acreditar que a sobrevivência pessoal tem algum sentido.

Há também ecos de O Processo de Kafka e do existencialismo de Camus: personagens presos a um sistema absurdo, tentando encontrar propósito num sofrimento imposto e aparentemente sem razão. O horror aqui não vem de monstros ou fantasmas, mas da própria condição humana.

O impacto e as camadas contemporâneas.

O lançamento do filme reacendeu o interesse pelo livro e por toda a “fase Bachman” de Stephen King. Em um mundo saturado por reality shows extremos, redes sociais e banalização da dor alheia, A Longa Marcha soa mais atual do que nunca. O autor antecipou, ainda nos anos 70, uma sociedade que transforma sofrimento em espetáculo e o cinema de 2025, ao trazer isso para as telas, apenas confirma o poder visionário de sua narrativa.

A recepção crítica destacou justamente a coragem do filme em manter o tom sombrio e contemplativo do material original. Não há triunfalismo, não há redenção fácil. A jornada termina como começou: ambígua, perturbadora e profundamente humana. Lawrence e Vanderbilt evitaram romantizar o sofrimento, concentrando-se no realismo brutal da caminhada, a poeira, o sangue, o suor e a progressiva perda de identidade dos competidores.

A trilha sonora, composta por Jeremiah Fraites, reforça o contraste entre a serenidade aparente da estrada e o terror psicológico crescente. O som dos passos, da respiração e dos tiros que pontuam as eliminações se tornam quase hipnóticos, criando uma experiência sensorial que mergulha o espectador no mesmo transe dos personagens.

Francis Lawrence declarou em entrevistas que considerava A Longa Marcha o mais emocional e filosófico dos textos de King, justamente por tratar do horror humano sem elementos sobrenaturais.

Entre o horror e a reflexão.

A Longa Marcha é menos um filme sobre uma corrida pela sobrevivência e mais uma meditação sobre o que significa estar vivo sob um sistema que transforma tudo em competição. Ao contrário de muitas distopias contemporâneas, aqui não há resistência organizada, nem líderes carismáticos, nem reviravoltas heroicas. Há apenas o corpo e o cansaço. Há apenas o passo seguinte.

Cada morte é brutal e sentida pelo telespectador. Mesmo não havendo espetáculo nelas, a execução sumária de jovens é de uma crueza pouco vista no cinema. Stephen King sempre disse que os verdadeiros monstros de sua obra não vivem em castelos nem saem das sombras. Vivem dentro de nós. 

O filme evita a explicação direta, mas o enquadramento final sugere que a caminhada é eterna, ou que o verdadeiro “vencedor” é aquele que se recusa a parar, mesmo que já se sinta morto. Lawrence opta por deixar o público num estado de contemplação, como se dissesse: “Ele venceu, mas o que significa vencer?”

Não sabemos ao certo o que foi delírio, o que foi desejo e qual foi a realidade. Isto nem importa. A Longa Marcha continua, dentro da estrada, dentro do espectador e dentro da própria cultura que consome dor como entretenimento. 

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